sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Fases

Ao fundo, ouço o cavalgar da madrugada. O dia rompe o céu e as ruas enchem-se de cores como os tecidos da montra do canto. As preocupações não espreitam e só conheço a inocência. Só preciso escolher o sabor do próximo gelado, que ao desfazer-se na minha boca, pequena e virgem, me fará vibrar e ansiar por outro. Só preciso saber como roubar as pinturas à minha mãe para que me preencham o rosto e para que o espelho testemunhe o meu sorriso. Respiro sem dificuldade e sem prestar atenção. Quero ver como o vento toca as flores, como os pássaros embelezam os céus quando corro para eles. Mas a tarde chega e com ela a responsabilidade dos anos. Já não escolho o sabor do gelado mas os sabores que me pintam a vida, ansiando não pelo próximo mas que este não seja amargo demais ao meu paladar frágil. À medida que as horas avançam, escurecendo o céu, ainda faço pinturas que me cobrem o rosto e me escondem do mundo. E no crepúsculo, já me ouço a respirar, cada inspiração mais fraca que a anterior. Mas ainda olho o vento a brincar com as flores. Ainda me deixo preencher pelas cores. E quando a noite caminha até mim, revejo o meu dia. Penso nos minutos desperdiçados, preciosos em tão poucas horas. Penso nos sorrisos, não aqueles pendurados na máscara mas os puros e sinceros. Penso em como devia ter cheirado mais o mar e sentido mais o vento. Resta-me fechar os olhos, agora que o sono chega e esperar que me seja permitido ouvir um outro cavalgar.

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